O teatro brasileiro padece com o silêncio de um de seus mais importantes práticos e observadores. Com a morte de Alberto Guzik (1944-2010), em 26 de junho, encerra-se a trajetória brilhante de homem igualmente palco e pena. Aos 66 anos, vítima de câncer, o respeitado teatrólogo paulistano, que trocou as redações pelas arenas, deixa contribuição histórica à memória da cena nacional.
Guzik estava internado desde o início do ano. Em 15 de fevereiro, escreveu pela útima vez em seu blog http://os.dias.e.as.horas.zip.net: “neste deslumbrante amanhecer, em plena segunda-feira de carnaval, embarco em minha viagem rumo à travessia do rio letes e à descida para o hades. quando voltar, relatarei o que vi e vivi. o hades não é um reino fácil de se visitar. ninguém retorna de lá sem estar transformado. sei disso. e prometo partilhar com os leitores destes dias e destas horas aquilo que vou vivenciar. dionisos me acompanha na viagem, além de ótimos amigos e do amor de muita gente. evoé”.
Assim: “evoé”, com um brado de evocação a Baco, Guzik encerrava seus posts na internet. Referia-se a Dioniso, divindade das festas e do prazer, com relativa frequência em seus textos mais pessoais, numa demonstração evidente de amor e entrega à arte-rito, tamanho respeito e consideração presente onde quer que atuasse. Embora tenha passado os últimos sete anos no palco – depois de quase 40 anos sem levar à cena personagem algum –, foi como crítico e professor que Guzik ganhou projeção.
Considerado por muitos “moderado”, Guzik conseguia manter olhar distanciado, com apuro e critério, sem ser pedante. Longe da arrogância e da empáfia tão comum entre os escrevinhadores do ramo, suas observações privilegiavam o bom artista em entrelinha e intenção. Criticado por ele, impossível esquecê-lo. Guzik não ajuizava valor. Sem o menor preconceito, seu foco estava em toda e qualquer contribuição à arte presente nessa ou naquela obra. Talvez em respeito aos próprios pequenos passos no tablado – aos 5 anos –, em montagem de Peter Pan, no Teatro Escola de São Paulo, dirigido por Tatiana Belinki e Julio Gouvêa, em 1949. Ou ainda, quem sabe, pelos anos seguintes difíceis, amador, vividos até a profissionalização com O processo, adaptação de romance de Kafka, em 1967, pela Escola de Arte Dramática (EAD).
Diferentemente dos teóricos soberbos que costumam escrever pelos cotovelos, Guzik sempre soube o que dizer. Também, naturalmente, sabia fazer muito bem. Mostrou competência em Monólogo da velha apresentadora, no Espaço dos Satyros, assim como em A vida na Praça Roosevelt. Aliás, foi com a Cia. de Teatro Os Satyros, em 2003, com o espetáculo Horário de visita, que o crítico voltou aos palcos. Em 2004, por insistência dos amigos Rodolfo García Vásques e Ivam Cabral, Guzik passou a integrar a trupe paulistana. Desde então, a Praça Roosevelt passou a ser celeiro de criação e debate do ex-jornalista.
Ano passado, aos 65, Alberto Guzik comemorou seis décadas de teatro com a realização de sonho antigo: a fundação da SP Escola de Teatro – Centro de Formação das Artes do Palco, da qual era diretor pedagógico. Por ocasião da inauguração, no início do ano, pouco antes da internação para tratamento, Guzik desabafou em seu diário eletrônico:
“...a vida é assim, difícil. coisas muito lindas muitas vezes causam uma lasquinha de tristeza na gente. minha tristeza não é pela escola, que será magnificamente lançada, em uma festa digna de todo o planejamento, de todos os sonhos, de todos os desejos de seus fundadores. a tristeza pela minha pessoinha, pois, por motivos de força muito maior, eu não terei condições de estar lá. eu, que integrei essa história desde o primeiro momento, não terei como ir à festa de abertura. juro que me senti como moisés, que conduziu seu povo até a terra prometida e foi, por um capricho de deus, proibido de entrar nela (...)’’.
Alberto Guzik, seja pelo feito impresso em livros, jornais e revistas de grande circulação, seja pela cara a tapa nas arenas de São Paulo, deixa legado de homem de teatro e estatura. Graduado em direito – sem jamais ter exercido a profissão –, nasceu e viveu mestre dos palcos. Professor, modelo e referência para gerações de bons artistas. Evoé, Guzik!
Livros de Guzik
• Risco de vida (Editora Globo, 1995);
• TBC: Crônica de um sonho (Editora Perspectiva, 1986);
• Cia de Teatro Os Satyros – Um palco visceral (Coleção Aplausos);
• Paulo Autran – Um homem no palco (Editora Boitempo, 1998);
• O que é ser rio e Correr? (Editora Iluminuras, 2002);
• O teatro de Alberto Guzik(Imprensa Oficial, 2009);
• Naum Alves de Souza, imagem, cena, palavra (Imprensa Oficial, 2009)
• Um palco iluminado (inédito)
Estado de Minas - Jefferson da Fonseca Coutinho - 3/7/10
Guzik estava internado desde o início do ano. Em 15 de fevereiro, escreveu pela útima vez em seu blog http://os.dias.e.as.horas.zip.net: “neste deslumbrante amanhecer, em plena segunda-feira de carnaval, embarco em minha viagem rumo à travessia do rio letes e à descida para o hades. quando voltar, relatarei o que vi e vivi. o hades não é um reino fácil de se visitar. ninguém retorna de lá sem estar transformado. sei disso. e prometo partilhar com os leitores destes dias e destas horas aquilo que vou vivenciar. dionisos me acompanha na viagem, além de ótimos amigos e do amor de muita gente. evoé”.
Assim: “evoé”, com um brado de evocação a Baco, Guzik encerrava seus posts na internet. Referia-se a Dioniso, divindade das festas e do prazer, com relativa frequência em seus textos mais pessoais, numa demonstração evidente de amor e entrega à arte-rito, tamanho respeito e consideração presente onde quer que atuasse. Embora tenha passado os últimos sete anos no palco – depois de quase 40 anos sem levar à cena personagem algum –, foi como crítico e professor que Guzik ganhou projeção.
Considerado por muitos “moderado”, Guzik conseguia manter olhar distanciado, com apuro e critério, sem ser pedante. Longe da arrogância e da empáfia tão comum entre os escrevinhadores do ramo, suas observações privilegiavam o bom artista em entrelinha e intenção. Criticado por ele, impossível esquecê-lo. Guzik não ajuizava valor. Sem o menor preconceito, seu foco estava em toda e qualquer contribuição à arte presente nessa ou naquela obra. Talvez em respeito aos próprios pequenos passos no tablado – aos 5 anos –, em montagem de Peter Pan, no Teatro Escola de São Paulo, dirigido por Tatiana Belinki e Julio Gouvêa, em 1949. Ou ainda, quem sabe, pelos anos seguintes difíceis, amador, vividos até a profissionalização com O processo, adaptação de romance de Kafka, em 1967, pela Escola de Arte Dramática (EAD).
Diferentemente dos teóricos soberbos que costumam escrever pelos cotovelos, Guzik sempre soube o que dizer. Também, naturalmente, sabia fazer muito bem. Mostrou competência em Monólogo da velha apresentadora, no Espaço dos Satyros, assim como em A vida na Praça Roosevelt. Aliás, foi com a Cia. de Teatro Os Satyros, em 2003, com o espetáculo Horário de visita, que o crítico voltou aos palcos. Em 2004, por insistência dos amigos Rodolfo García Vásques e Ivam Cabral, Guzik passou a integrar a trupe paulistana. Desde então, a Praça Roosevelt passou a ser celeiro de criação e debate do ex-jornalista.
Ano passado, aos 65, Alberto Guzik comemorou seis décadas de teatro com a realização de sonho antigo: a fundação da SP Escola de Teatro – Centro de Formação das Artes do Palco, da qual era diretor pedagógico. Por ocasião da inauguração, no início do ano, pouco antes da internação para tratamento, Guzik desabafou em seu diário eletrônico:
“...a vida é assim, difícil. coisas muito lindas muitas vezes causam uma lasquinha de tristeza na gente. minha tristeza não é pela escola, que será magnificamente lançada, em uma festa digna de todo o planejamento, de todos os sonhos, de todos os desejos de seus fundadores. a tristeza pela minha pessoinha, pois, por motivos de força muito maior, eu não terei condições de estar lá. eu, que integrei essa história desde o primeiro momento, não terei como ir à festa de abertura. juro que me senti como moisés, que conduziu seu povo até a terra prometida e foi, por um capricho de deus, proibido de entrar nela (...)’’.
Alberto Guzik, seja pelo feito impresso em livros, jornais e revistas de grande circulação, seja pela cara a tapa nas arenas de São Paulo, deixa legado de homem de teatro e estatura. Graduado em direito – sem jamais ter exercido a profissão –, nasceu e viveu mestre dos palcos. Professor, modelo e referência para gerações de bons artistas. Evoé, Guzik!
Livros de Guzik
• Risco de vida (Editora Globo, 1995);
• TBC: Crônica de um sonho (Editora Perspectiva, 1986);
• Cia de Teatro Os Satyros – Um palco visceral (Coleção Aplausos);
• Paulo Autran – Um homem no palco (Editora Boitempo, 1998);
• O que é ser rio e Correr? (Editora Iluminuras, 2002);
• O teatro de Alberto Guzik(Imprensa Oficial, 2009);
• Naum Alves de Souza, imagem, cena, palavra (Imprensa Oficial, 2009)
• Um palco iluminado (inédito)
Estado de Minas - Jefferson da Fonseca Coutinho - 3/7/10
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