Carolina, discreta, entendeu o silêncio da namorada, que resolveu desvendar os guardados da mãe biológica. Larissa sabia que o passado de Beatriz estava em suas mãos. Abriu a malinha com cuidado, enquanto Carolina conferia os CDs empilhados no móvel que amparava o som. Ligou o aparelho e deixou rolar música suave.
Dentro da valise de segredos, entre tantos pequenos “tesouros”, envelope abarrotado com fotos de Larissa. De pequeninha até o último aniversário, em churrascaria do Bairro Caiçara. Beatriz nunca gostou de fotografias. Guardava apenas as da filha, criada pela avó até a maioridade em Divinópolis. Foi assim, pelos retratos enviados por vó Mercedes, que Beatriz viu a filha crescer. Agora, Larissa entendia porque vó Mercedes insistia tanto em fotografá-la vez por outra. Quando tinha saúde, a velha não passava dois ou três meses sem ir aos correios para despachar encomenda.
Num outro canto, ajuntados por fita de cetim cor-de-rosa, os boletins com o histórico escolar de Larissa. Beatriz não queria sua falta de estudo para a filha. Sendo assim, mesmo à distância, fazia questão de saber as notas da menina. Na malinha, havia ainda documentos, miudezas e meia dúzia de cadernos transformados em diários. Muitas cartas escritas, endereçadas à filha, que não foram entregues. Por vergonha ou falta de coragem, Beatriz jamais revelara à mãe ou à filha que, quando veio para Belo Horizonte trabalhou como garota de programa.
Por mais de quatro anos, debaixo de homens de todos os tipos, Beatriz fez vida. Até que, por meio de colega cabeleireira, conseguiu trabalho como vendedora de roupas de confecção barata. No Barro Preto, Beatriz refez o rumo até montar a própria loja e comprar apartamento, sonhando trazer a mãe e a filha do interior. Tudo isso, ali, em linhas, repetidas vezes em folhas soltas ou encadernadas: “Não passo dia ou noite sem pensar na família reunida. Deus é misericordioso e há de me conceder essa graça”. Para quem não concluiu o ginásio, Beatriz, de tanto ler a Bíblia, sabia bem usar as palavras. Larissa não esperava da mãe biológica aquele universo refeito em letras.
A escrita miúda e legível era o desabafo da mãe morta. O silêncio cheio de vida em busca de paz eterna. Por dentro, Larissa podia ouvir a voz de Beatriz a lhe sussurrar mundaréu de verdades escondidas: “Deus pode traçar caminho certo por vias tortas, minha filha. A violência de homem ruim semeou você no ventre de uma menina. Perdoa-me. Não estava preparada para ser mãe”. Naquele instante, Larissa soube do estupro e da gravidez de Beatriz, em passagem de terror e medo. Colado em pé de página amarelada, telegrama do sujeito malfeitor, parente viajante: “Segue o endereço da clínica em BH. Tudo pago. Essa criança não pode nascer”.
Em prantos, Larissa foi amparada por Carolina.
Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 3/7/10
Dentro da valise de segredos, entre tantos pequenos “tesouros”, envelope abarrotado com fotos de Larissa. De pequeninha até o último aniversário, em churrascaria do Bairro Caiçara. Beatriz nunca gostou de fotografias. Guardava apenas as da filha, criada pela avó até a maioridade em Divinópolis. Foi assim, pelos retratos enviados por vó Mercedes, que Beatriz viu a filha crescer. Agora, Larissa entendia porque vó Mercedes insistia tanto em fotografá-la vez por outra. Quando tinha saúde, a velha não passava dois ou três meses sem ir aos correios para despachar encomenda.
Num outro canto, ajuntados por fita de cetim cor-de-rosa, os boletins com o histórico escolar de Larissa. Beatriz não queria sua falta de estudo para a filha. Sendo assim, mesmo à distância, fazia questão de saber as notas da menina. Na malinha, havia ainda documentos, miudezas e meia dúzia de cadernos transformados em diários. Muitas cartas escritas, endereçadas à filha, que não foram entregues. Por vergonha ou falta de coragem, Beatriz jamais revelara à mãe ou à filha que, quando veio para Belo Horizonte trabalhou como garota de programa.
Por mais de quatro anos, debaixo de homens de todos os tipos, Beatriz fez vida. Até que, por meio de colega cabeleireira, conseguiu trabalho como vendedora de roupas de confecção barata. No Barro Preto, Beatriz refez o rumo até montar a própria loja e comprar apartamento, sonhando trazer a mãe e a filha do interior. Tudo isso, ali, em linhas, repetidas vezes em folhas soltas ou encadernadas: “Não passo dia ou noite sem pensar na família reunida. Deus é misericordioso e há de me conceder essa graça”. Para quem não concluiu o ginásio, Beatriz, de tanto ler a Bíblia, sabia bem usar as palavras. Larissa não esperava da mãe biológica aquele universo refeito em letras.
A escrita miúda e legível era o desabafo da mãe morta. O silêncio cheio de vida em busca de paz eterna. Por dentro, Larissa podia ouvir a voz de Beatriz a lhe sussurrar mundaréu de verdades escondidas: “Deus pode traçar caminho certo por vias tortas, minha filha. A violência de homem ruim semeou você no ventre de uma menina. Perdoa-me. Não estava preparada para ser mãe”. Naquele instante, Larissa soube do estupro e da gravidez de Beatriz, em passagem de terror e medo. Colado em pé de página amarelada, telegrama do sujeito malfeitor, parente viajante: “Segue o endereço da clínica em BH. Tudo pago. Essa criança não pode nascer”.
Em prantos, Larissa foi amparada por Carolina.
Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 3/7/10
Um comentário:
Olá
Através do blog do Caca estou tendo aa possibilidade de conhecer blogs de alguns escritores. Gostei deste seu texto, considero-o uma bela homenagem à Alberto Guzik.
Abços,
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