Jefferson da Fonseca - Mostra Tua Cara

sábado, 3 de abril de 2010

O velório da dona Mercedes

Seria apenas mais um funeral na cidade, não fosse o velório da dona Mercedes. No cômodo triste do Cemitério da Saudade, manhã fria, meia dúzia de vizinhos velavam a morta. Junto ao caixão, de pé, com os dedos a ajeitarem os cravos, a filha Luísa. Primogênita, solteirona, 44 anos, foi ela quem cuidou da mãe até o último suspiro. Andréia, a caçula, que morava com o namorado no Bairro Santo Antônio, havia acabado de dar notícias pelo celular. Disse que estava com terrível dor de cabeça e que precisava dormir um pouco mais. "Lá pelas 10h eu chego. Faz sala aí pra mim, Lulu", desligou. Luísa conhecia bem a irmã e não se importou. Estava preocupada era com o Joel, irmão taxista. Desde que soube da morte da mãe, deixou o hospital e não apareceu mais. Na casa dele, em Contagem, ninguém atendia. Há pouco, coisa de meia hora, a mulher do rádio-táxi disse que ele não estava trabalhando. Luísa não sabia o que fazer. Pensou até em pedir a ajuda da polícia, mas decidiu aguardar o andar da hora.

Soubesse a Mercedes os herdeiros que colocou no mundo, teria morrido de desgosto. Quando o doutor anunciou a doença incurável, a viúva de 67 anos só quis saber se o tempo que lhe restava era suficiente para terminar a obra em casa. Um casarão antigo de quatro quartos e única suíte, no Bairro São Lucas. O sonho da aposentada, com a reforma do imóvel, era ter um banheiro para cada um dos três filhos. Sonhava em tê-los juntos, morando sob o mesmo teto. Luísa foi a única a não sair de casa. Vivia para a mãe. Joel e Andréia, os mais queridos de dona Mercedes, caíram no mundo cedo. Joel se enrabichou com mulher bem mais velha e largou os estudos para ficar na praça com a placa do pai. Com medo das irmãs reclamarem o bem, sumiu e, vez por outra, aparecia para descolar algum dinheiro com a velha protetora. Andréia, descolada que só ela, vivia para o próprio umbigo. Durante o dia, trabalhava como secretária numa clínica odontológica e, à noite, fazia teatro com grupo amador, horroroso.

O velório estava por se encerrar silencioso. Luísa não arredava o pé do corpo da mãe. Pequena missa celebrada, já beirava 11h quando Joel e Andréia chegaram, juntos, batendo boca. "Ladrão. Você é ladrão! Senta, Lu! Segura a tampa aí, moço. Pera lá! Sabe o que o seu irmão fez, Lu? Ontem, ele deixou a gente lá no hospital, arrumou um caminhão e deu uma limpa lá na casa da mamãe. Levou tudo de valor que tava lá. Eu chego lá agora de manhã pra buscar umas coisinhas que são minhas, que ela já havia me dado, e nada. E o pior, escuta só, ele ainda voltou com um chaveiro para trocar todas as fechaduras da casa. Só que ele quebrou a cara porque eu já tava lá com outro chaveiro, porque eu conheço bem o tipo de irmão que a gente tem. As chaves estão comigo e se ele aparecer lá de novo a gente tem que chamar é a polícia".

Luísa, com o olho em águas, não disse palavra. Fez sinal para o coveiro e pediu que ele fechasse o caixão. De costas para a discórdia, mais uma vez, rezou baixinho pela mãe.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 3/4/10
Arte: "Retrato de família", por Juha Vasku

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