Jefferson da Fonseca - Mostra Tua Cara

sábado, 9 de maio de 2009

Uma rua chamada solidão (parte 3)

"Acendeu cigarro de palha e viajou nas cinzas da brasa quase apagada pelos tragos secos da garganta em nó"



Com as sandálias nas mãos, as duas putas correram molhadas pela fonte do Bulevar Arrudas. Maria e Claudete, molecas, fora da Rua Guaicurus, voltaram ao passado, em tempo de inocência e paz. Os passantes não entenderam a alegria fugaz das duas mulheres de roupas baratas, indecentes, na Praça da Estação. Cúmplices, caminharam até o Parque Municipal, onde comeram pipoca e tomaram sorvete. Divertiram-se imaginando as histórias dos coadjuvantes que lhes cruzavam o caminho. “Aquela ali, apressada, de chapinha no cabelo, corre para chegar em casa e preparar a comida do marido que, na certa, tem outra na cabeça”, disse a velha carioca. Maria, romântica, rebateu: “Vai ver tá correndo para ir ao cinema com o namorado que ela conheceu no pagode”.

Diante do Teatro Francisco Nunes, fechado para reforma, sonharam vida emprestada. Lembraram-se do movimento nas noites de espetáculo no Rio de Janeiro. Pensaram família, de mãos dadas, em passeio pelo jardim botânico. Juntaram trocados para alugar pedalinho e gargalhar no meio da lagoa esverdeada. Posaram para o lambe-lambe sorridente e gentil. O tempo se ia. Hora de voltar para o barracão de número 158F, no Bairro São Gabriel. Foram de metrô. Sempre gostaram do barulho e do arrocho nos trens de aço. Encararam estranhos, paqueraram e se sentiram queridas pelos homens de olhares curiosos. Já não havia sol na última parada. Da estação, a pé, contaram 18 quadras até a casinha simples de janelas com vista para paredes cruas.

Julim, o neto-filho de Claudete, comia macarrão sem sal com a vizinha grávida. Ficou feliz ao ver a mãe-avó chegar mais cedo do trabalho. Maria sentiu saudades da velha doente e desdentada, deixada na Zona da Mata. Decidiu usar orelhão na farmacinha da esquina. Cartão telefônico na mão, respirou fundo para ter notícias de dona Iracema. Do lado de lá da linha: “Ela morreu faz duas semanas. De pneumonia”, noticiou a voz seca de tia amarga e solteirona. Maria não conseguiu emitir som ou dizer palavra. Apenas devolveu o fone azul ao gancho de metal. A felicidade da tarde rara deu lugar a dor das mais doídas, abafada, sentida. Pensou não voltar para a casa da amiga. Quis abrir porta no vazio e desaparecer no nada. “Bom seria morrer agora”, pensou alto sentada na calçada.

Andou sem rumo e entrou em boteco copo-sujo para beber sozinha. A morte da mãe lhe abriu janela para tempos de criança, quando havia companhia de sangue. Acendeu cigarro de palha e viajou nas cinzas da brasa quase apagada pelos tragos secos da garganta em nó. Enquanto isso, na rodoviária de Vitória, no Espírito Santo, moço evangélico de terno feito no corpo embarcava em ônibus para Belo Horizonte.

(Continua no próximo sábado).
Vida Bandida - 9 de maio de 2009 - Vida Bandida - Jefferson F. coutinho

Um comentário:

Lígia Clarine disse...

Que emoção, ver a vida assim feito carne viva.
Que espetáculo essa alegria barata!
E a dor desse mal irremdiável, de dar nó na garganta subir os baldinhos das lágrimas, e mandar desce-los. Uma esperança, uma espectativa, o ônibus que parte de Vitoria, o que será?
grande abraço!