O trem BH-Vitória seguia sobre os trilhos. No JK, Dorinha acordou com quebradeira no apartamento vizinho. Não chorou a falta do João. Sabia que não conseguiria prender o moço do Espírito Santo. Apenas sorriu ao ler o bilhete de gratidão e experimentar o anel de brilhante deixado pelos dias de gentileza. Raul, o schnauzer, estava inquieto com o barulho do lado de fora. A cantora foi até o corredor e viu o “seu” Ananias, descontrolado, com taco de sinuca quebrado na mão. Ao chão, com o rosto mergulhado entre os braços, a filha Ariela. “Não sou mais seu pai, vagabunda! Some da minha vista! Some!”, berrou. Quando viu a vizinha, o velho fez silêncio, lançou último olhar de fúria contra a menina e voltou à quitinete, batendo a porta com violência.
Dorinha se aproximou da garota e ofereceu ajuda: “Vem comigo. Faço um copo com água e açúcar pra você”. Deu-lhe a mão e apoio para ficar de pé. Ariela estava machucada. Por dentro e por fora. Sangrava na gengiva e tinha marcas nas pernas e nos braços. “Vou chamar a polícia!”, disse a cantora. “Não. Por favor”, pediu Ariela. Dorinha ficou bastante comovida com o estado da menina, que não parecia ter mais de 20 anos. Com os olhos cansados e o corpo franzino, de vestido curto, florido e barato, ela deixava evidente ter passado a noite em claro.
Copo de calmante nas duas mãos trêmulas, Ariela olhou para a mulher solidária como adulto carente do colo da mãe. Havia um grito de socorro perdido, parado no ar. Dorinha abraçou-a, carinhou seus cabelos maltratados e tentou saber melhor o que estava acontecendo:
– Quer conversar?
– Acho que sim.
– Posso ajudar?
– Ninguém pode.
– Como se chama?
– Ariela.
– Isadora. Mas desde criança me chamam de Dorinha.
– Também me chamam Laura e Angelina.
– Como assim?
– É que tenho outros nomes.
– Por que?
– Sou puta.
– Ah.
– Trabalho na Guaicurus. Conhece?
(Continua no próximo sábado)
Um comentário:
Garantia de mais um belo conto que vem aí pra nós. Estarei acompanhando, Jefferson. Abraços.Paz e bem.
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