Ele deixou o consultório no pequeno prédio do São Lucas em
frangalhos. A voz do homem de branco lhe atingiu como flecha. O timbre
grave do doutor Leopoldo havia lhe decretado sentença de morte: câncer
no pulmão. Mal causado pelo cigarro, companheiro inseparável de longa
data. Oito ou 10 meses de vida, talvez. Era o que lhe restava.
Tempo para colocar deveres e obrigações em dia e, quem sabe, morrer em
paz. Queria se redimir de qualquer culpa. Em 50 anos de vida ganhou
desafetos bestas e vacilou feio com parentes e amigos. Condenado, vagou a
pé pelo bairro da Serra. Entrou num botequim da Rua do Ouro, pediu café
e começou a listar, em folha de papel vagabundo, tudo o que queria
fazer antes de partir.
O maço cheio de cigarros, no bolso, junto ao peito, ele fingiu não ter.
“Agora, não!”, pensou. “Mais tarde.” E começou a escrever os nomes
daqueles com quem deveria desculpar-se. O filho, abandonado no passado.
Hoje, homem feito, o garoto não queria saber do pai vacilão. O amigo,
quase irmão, perdido por bobagem. O pai esquecido, largado no interior. O
afilhado sem presente, abraço ou aperto de mão.
Listou o nome da mulher leal e companheira. A mesma dona sem valor,
tratada freqüentemente com descaso e desconsideração. Incluiu também uns
10 colegas de trabalho, subordinados, injustiçados. Naquele bar,
repensou a vida e seus significados. Determinou que, daquele instante em
diante, tudo teria outro sentido. E que poderia, no pouco tempo que lhe
restava, ser o homem que não fora em meio século de vida.
Fim de tarde. O boteco, antes vazio, ganhava movimento de fim de
expediente, e ele, solitário, numa mesa de canto, com o café frio no
copo lagoinha, não parava de escrever nomes e ações de redenção em
guardanapos de papel. Na cabeça, as vozes alegres dos fregueses
falastrões se confundiam com o falar manso e sério do homem de branco,
amigo desde a infância.
Apesar do ambiente barulhento, ele pôde ouvir o chamado insistente do
telefone celular. No identificador de chamadas, o número pessoal do
doutor Leopoldo. Hesitou. Pensou em não atender. Atendeu. Do outro lado,
o médico sem graça se desculpa por erro grave do laboratório de
radiologia. Exames trocados. Acontece.
O homem desligou o telefone sem pronunciar palavra. Catou no bolso um
cigarro. Mandou goela abaixo o café gelado. Acendeu o careta e puxou
fundo um último trago. Decidido, mandou o maço no latão de lixo da
calçada.
As anotações de desespero ele guardou. Quem sabe, para rever mais tarde.
Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho
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