Jefferson da Fonseca - Mostra Tua Cara

segunda-feira, 29 de julho de 2013

'Sônia, 48. Para quem sabe o que quer'

Naquela segunda-feira, nada de invencionices para o jantar. Um ravióli de queijo brie, damasco e nozes ao molho de champanhe. Receita que Cantareira aprendeu num dos cursos de gastronomia que ele vivia de fazer. O velho preparou a mesa com toalha de luxo para receber Sônia. Uma coroa magrela, corpo de menina, acertada nos classificados por R$ 200 - promoção da coluna relax do jornal popular.

- Sônia.
- Sim. Sobe.

Ela subiu sem demora. Na porta, sorriu para o olho mágico com a segurança das meninas maduras. O coronel setentão suspirou ao ver a dama de preto e branco - moda em Belo Horizonte. Admirou-a dos pés à cabeça e disse a primeira frase que veio-lhe à mente:

- Meninas crescidas assim são raras de se encomendar hoje em dia.
- Você quer dizer velha...
- Não. Quero dizer com essa estatura de presença. Por favor, entre.
- Obrigada, Vicente. Vicente... não é isso?
- Sim. Vicente. Você é a Sônia...
- Já tive muitos nomes. Todas têm. Mas gosto de Sônia. Foi o nome que a minha mãe me deu. Homenagem a minha vó, uma mulher guerreira do Norte.
- Uma pergunta... Você gosta do Papa Francisco?
- Não gosto nem desgosto. Simpático ele. Por que?
- É que, antes de você chegar, estava aqui pensando... Eu não serviria pra ser Papa.
- Você? Papa?
- Sim. (pausa) Parece que dá muito trabalho esse negócio de ser santo. Mas esse argentino está me saindo muito bem, não acha?

Sônia concordou com a cabeça. Sorriu charme e não levou adiante o assunto. Vicente trouxe o jantar e serviu-lhe a taça de vinho branco, chileno. Cantareira não fez mais rodeios e falou em amor.

- Você já amou de verdade, Sônia?
- Uma vez. Faz tempo. Foi bom. Serviu pra me dar força pra tocar a vida.
- O que aconteceu? Importa-se em tocar no assunto?
- De jeito nenhum. Estou curada. O sujeito se apaixonou por outra e foi embora. Eu tava grávida. (pausa) Perdi o bebê. Deus sabe o que faz. Aí, cai na vida.
- Há quanto tempo?
- Muito. Eu era bem menina.
Sem sofrimento, o velho viúvo e a dona de aluguel trouxeram à mesa o passado. Ela falou um pouco mais sobre o namorado que sumira no mundo, enquanto mandava ver o ravióli. Cantareira revelou à companheira de ocasião o amor intacto pela mulher amada, morta há mais de 20 anos.

- Amor a gente não explica. A gente só sente, não é!?
- É o que digo, Vicente: amor é amor. Sexo é outra coisa. A gente pode até botar preço. E quando tem preço a coisa fica mais transparente, às claras para os dois.


Também sorriram tolices. Ao fim do jantar, Cantareira pagou os R$ 200. Fez bela foto da coroa para o mural de lembranças. Na porta, já de saída, Sônia abraçou o velho como se o amasse por instante.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Crianças felizes, homens melhores


“A melhor maneira de tornar as crianças boas é torná-las felizes”, escreveu Oscar Wilde. Sou um sujeito meio atrevido com a psicologia. Um amador, curioso, estudioso do assunto por conta própria. E as crianças não me saem da cabeça. “A criança é o pai do homem”, disse Freud, o pai da psicanálise.

Também sou pai. Criança, fui pai do homem que sou. E tenho três filhos encantadores, donos do meu coração. Portanto, ainda que sem título de pós-doutorado na matéria, homem, sou grande observador. Esquadrinhador por natureza e paixão. Tenho razões particulares para acreditar que a infância pode explicar o sujeito crescido.

Meu pai, o velho Botelho, me ensinou isso cedo. Muito cedo. Vivíamos um inferno em casa, com a ausência da minha mãe. Entretanto, o pai não “deixou o cachimbo cair”, como costumava dizer. “Cochilou, o cachimbo cai, meu filho”. E assim foi. O velho fez de tudo para que seu filho fosse uma criança feliz.

Nada de reclamações ao vento, à direita e à esquerda. O velho nunca foi de reclamar. No rosto, um sorriso de todo tamanho. Sempre! Conheço adultos às avessas que só sabem é reclamar da vida. Crianças infelizes, infelizmente.

Olhar para o meu pai e ver a criança que ele foi tem sido um exercício permanente na minha vida. Especialmente, porque ele, budista, setentão, desde a meia idade, esforça-se ao máximo para cuidar da criança do passado. Um garoto filho de pai severo e ignorante. De muito bom coração, mas absolutamente ignorante, que o ensinou o único modo de ser que conhecia.

O velho Botelho conta passagem que me impressiona: aos sete anos, já trabalhando na roça, recebeu um canivete e um pedaço de fumo de presente do meu avô, que disse: “Tome. Homem que é homem tem o seu próprio fumo”. Era o que o velho, pai do meu velho, acreditava.

Se pensar apenas no fumo, vejo um grande absurdo. Mas, além, bem além, havia uma lição que o Botelho jamais esqueceu: nunca foi sujeito de pedir favores. Honesto como jamais conheci, o velho nunca pediu nada emprestado ou deixou de honrar compromisso algum. Lição do meu avô, ignorante que só ele.

Crianças boas são as mais felizes. Ao longo da vida, no entanto, acredito, podemos mudar o rumo das infelicidades enraizadas quando as percebemos. Tenho pensado muito nisso. Ainda mais vendo tanta gente triste, infeliz porque não dá conta de enxergar e tratar dos males da infância.

Bandeira Dois - Josiel Botelho

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Bela, 23: 'Porque Deus fez a mulher'

O anúncio em negrito, na coluna Relax, parecia fora de lugar. O classificado do jornal popular provocou o velho Cantareira, que circundou o quadrado com a caneta vermelha, de luxo. Catou o telefone e, sem pensar muito, agendou o compromisso com a moça para às 19h.

- R$ 300.
- Combinado.

Na medida para dois, o jantar: tortiglioni fresco ao ragu de linguiça artesanal. Mais uma especialidade do coronel aposentado, chef de cozinha amador. Bela, diferentemente das outras meninas alugadas pelo viúvo, chegou mais cedo.

- Bela.
- Ah, sim. Sobe.

Um espetáculo de metro e sessenta, mais ou menos. Pernas bem feitas, pele delicada, sem excessos na maquiagem. Cabelos brilhantes, nos ombros. Perfume levemente adocicado, roupas de bom gosto e de corte sensual em vermelho e amarelo. Colo à mostra, com seios firmes e naturais. Mas o melhor estava na boca: dentes brancos e alinhados, de cinema. De quebra, o sorriso mais gostoso de que Cantareira teve notícia.

- Vicente Cantareira?
- Sim. Isabela?
- Não, amor... Bela. Curtinho assim é melhor, não acha? Bela.
- Bela. Sim, claro. Combina melhor com você. Tem razão.
- Isabela é muito comum... não sou nada comum amor... você vai ver.

Ela entrou como se conhecesse o lugar. Soltinha, andou pela sala e escolheu o CD para alegrar o ambiente.

- Posso?
- Claro.

Bela colocou a música antiga e pediu bebida.

- Adoro música velha. Hoje, só tem coisa ruim... sertanejo é tudo igual... um horror. Ninguém merece. É só dor de corno e de cotovelo. Tem funk, né!? Podem criticar à vontade, mas tirando a metade mais pesada, cheia de sacanagem, o batidão do funk é muito bom pra gente dançar. Isso é o que?

- Cartola. “Preciso me encontrar”, instrumental com o Choro das Três... É uma das minhas músicas prediletas. Gosta?

- Linda. Muito linda. Eu conheço... quer dizer, acho que conheço.

Bela bebe a taça de vinho num só gole. Alegre, divertida, troca passos e começa a dançar sozinha na sala. Show que arranca suspiros do velho sistemático e bem comportado. Ele assiste com raro prazer a performance da mulher. Ao fim da música, o coronel vai até a cozinha buscar o prato para a noite de programa. Uma faixa instrumental emenda à outra e a trilha de fundo agora é “O mundo é um moinho”, outro clássico de Cartola.

- Essa eu conheço demais... minha mãe vivia cantando pra mim... “Presta atenção, querida, embora eu saiba que estás resolvida... em cada esquina, cai um pouco tua vida... em pouco tempo não serás mais o que és...”

- Sua voz é muito linda, Bela.
- Obrigada! É que cantava no coral da igreja.
- Você é católica?
- Sim. Mas não vou mais à missa... ficou muito chato.

Juntos, jantaram como velhos amigos. Cantareira pagou com gosto pela companhia. Sexo? Nem pensar. Ali, sexo só para os fracos.

- Boa noite, amor.

Uma foto com a velha polaroide para o mural particular de alegrias do viúvo apaixonado. Bela foi para casa, dormir, feliz por não ter tirado a roupa.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho

quarta-feira, 17 de julho de 2013

O garoto e a mulher de vento

Vê-se muita coisa nessa vida. É coisa que se a gente contar ninguém acredita. Mas se deixa de contar, o passado fica encasquetando a cabeça da gente de tal maneira, que fica difícil pegar no sono. Já faz mais de hora que tento dormir e nada. O jeito é deixar a caneta correr solta na caderneta de papel pautado, enquanto o sol se levanta. Assim, quem sabe, o espanto se vai. O dia vai ser longo e logo mais vem a hora do batente de novo.

A história já vou contar. Foi no Bairro Califórnia, na Região Noroeste de Belo Horizonte, numa rua com nome de instrumento. A corrida foi combinada pela manhã, por telefone – indicação do Adelson, que está de férias na Bahia. A voz do jovem passageiro foi firme. Ele queria um carro de bagageiro grande. Estava de mudança para São Paulo e não queria qualquer um com seus pertences mais particulares. Combinamos a corrida para às 21h.

Pouco antes, já estava à disposição do freguês. Toquei o interfone e esperei. Vou contar aqui porque o Adelson, primo do sujeito, me garantiu que ele até ia gostar, já que não faz segredo de algumas de suas “extravagancias”. O rapaz de vinte e poucos anos é comerciante. Inclusive, está indo para São Paulo para receber o dobro do que estava ganhando em Minas Gerais.

Pois bem. O garoto desceu com duas grandes malas. Ambas, muito pesadas e bem lacradas com três cadeados cada. Ele, bem vestido, com terno muito bem cortado, gravata florida, cabelo penteado de lado e óculos de grau. Malas acomodadas, ele voltou para buscar sua companhia de viagem e “de vida”. Para mim, uma grande surpresa, devo admitir.

Ele e a sujeita se sentaram no banco de trás. Pelo retrovisor, era difícil acreditar na cena que mais parecia teatro do absurdo. Uma mulher de vento. Sério. Uma daquelas bonecas importadas que mais parece gente. Perfumada, loira, de salto alto e com um vestido decotado de parar o trânsito. Já tinha ouvido falar de como essas “meninas” são reais, mas daquele tanto… não podia imaginar.

Ele ficou o tempo todo abraçado com a boneca. Ajeitava a roupa da “moça”, os cabelos… Sussurrava no ouvido dela. Alguma coisa consegui ouvir: “Amanhã cedinho a gente chega…” Ou ainda: “Vai ser melhor do que avião… você vai ver”. Pareceu-me sonho. O Adelson nem para me alertar a situação. Foi me contar a história depois. Quando deixei o garoto e a tal mulher de vento na rodoviária, a primeira coisa que fiz foi ligar para o amigo.

“Trata-se de caso sério de amor”, explicou o Adelson. Há mais de ano, desde que o rapaz esteve na China, a trabalho, ele não desgruda da “criatura”. Parece que eles se conheceram por lá, num jantar à luz de velas em Xangai.

Bandeira Dois - Josiel Botelho

segunda-feira, 15 de julho de 2013

'Bia, 25: loira filé, BB grande'

A criatividade nas páginas de classificados relax era mesmo de chamar a atenção. Cantareira passava a semana inteira tentando decifrar linha por linha das colunas estreitas do jornal popular. A “loira filé de BB grande” despertou a curiosidade do chef de cozinha. Para o encontro daquela segunda-feira: Bia. No cardápio, às 19h, “Filé ao molho de jabuticaba”. Homenagem à menina de aluguel.

– Bia.
– Sobe.

Quando Bia saiu do elevador, Cantareira já estava com a porta aberta. Gostou do que viu e sorriu para a encomenda. De fato, o bumbum da moça não era pequeno, mas não era aquele exagero duplo e maiúsculo impresso em negrito no anúncio. O velho coronel, setentão e elegante, de bom humor, decidiu fazer graça.

– O seu BB não é tão grande. Você é mesmo a Bia, do jornal?
– Ah… é que emagreci. Quando fiz o anúncio era muito maior.
– Compreendo.
– O senhor quer cancelar o programa?
– Não. De jeito nenhum, Bia. Já que você está aqui… vamos, entre.

A mulher, tímida até, entrou e nem esperou que Cantareira oferecesse a cadeira. Sentou-se desconfiada, com as mãos entre as belas pernas nuas. O viúvo trouxe vinho tinto encorpado, reserva para os dias de programa. Bia não quis. Bebeu água apenas.

– Não bebo em serviço.
– Está certo. Você dirige?
– Não. Ando de ônibus. Já me acostumei. À noite, uso táxi.
– Também não gosto de dirigir. Nunca gostei. Só tem maluco nas ruas. Eles dirigem como se fossem os donos da cidade.

Cantareira busca a travessa luminosa, de prata. Bia sorri ao ver o capricho do velho.

– Você gosta de cozinhar?
– Gosto muito, Bia. É um dos grandes prazeres que tenho na vida.
– Tá com uma cara muito boa.
– Fiz especialmente pra você. Espero que goste.
– O senhor não tem medo?
– Medo?
– É. De fazer amor com a barriga cheia?
– Fazer amor?

O velho não consegue segurar o riso. Ela não entende.

– Por que o senhor tá rindo?
– Desculpe-me, Bia. Mas é que você é a primeira garota que vem na minha casa e fala em “fazer amor”. As outras costumam ser diretas. Adoram um palavrão.
– É que não gosto de palavrão.
– Não faz mal. (longa pausa) Você não me parece muito à vontade na profissão.
– O senhor acha?
– E digo mais: você parece ser boa mãe. 
– Faço o que posso. Tenho um bebê. João. É lindo. Quer ver uma foto?
– Claro. Que idade ele tem?

Bia, tomada de alegria súbita, pega a foto na bolsa de oncinha.

– Não é lindo? Ele faz 10 meses amanhã. O senhor quer ouvir a voz dele? Ele já fala mamãe e vovó. Olhe só…

A loira mostra a gravação no celular com algumas estripulias do bebê grandão. Cantareira fica feliz com a alegria da jovem mãe. Juntos, terminam o filé com gosto, satisfação e cumplicidade. O velho vai até a estante e traz a polaroide.

– Posso?
– O que é isso?
– Uma máquina fotográfica. Gosto de registrar boas companhias. Importa-se?
– Não. Claro que não.

Cantareira faz a foto cheia de sorriso da menina. Pega a carteira no paletó e saca as seis cédulas de R$ 50 pelo programa. Beija a testa da “mulher filé” e agradece. Ela sorri. Parece entender o muito pouco que o velho precisa.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho

segunda-feira, 8 de julho de 2013

'Natasha, 27: indecente como a solidão'

Logo que abriu a porta naquela segunda-feira, Vicente Cantareira soube que Natasha não era como as outras tantas que ele conhecia. Contratar meninas de aluguel, ao menos uma vez por semana, para hora de vivência extraordinária estava dando ao velho viúvo, coronel aposentado, noites inesquecíveis. O setentão, colecionador de nomes e de encontros com meninas tristes, havia descoberto nova razão para viver.

– Entre. A casa é sua, Natasha.
– Obrigada, Vicente.
– Você me pareceu triste ao telefone.
– Normal. É que alguns dias são mais iguais que os outros.
– Uma bebida?
– Sim. Algo forte. Pode ser?
– O que você quiser.
– Este está bom. Duplo e sem gelo.
– Vou acompanhar você.
– Tem dias que é preciso deixar um pouco de lado a realidade.
– Esta noite, por exemplo?
– Não me leve a mal... nada tem a ver com você. É comigo.
– Sim. Mas você está comigo e isso, de certa maneira, me envolve...
– É que... é difícil seguir em frente sem olhar um pouco para trás.
– Sei bem como é isso... especialmente, no meu caso, quando o que se vê pela frente é bem mais curto do que o que está para trás...
– Não sei se isso tem muito a ver com o tamanho do que se viveu...
– Tem razão... tem muito mais a ver com “o que” se viveu, não é!?
– Penso que sim... você já teve a sensação de estar sempre no mesmo lugar?
– Quase todos os dias da minha vida, Natasha.
– E isso não incomoda... não o faz menos feliz?
– Depende. Procuro aceitar o presente como um agrado dos dias. E se ele se repete, deve ser vivido com outra boa dose de intensidade.
– Não compreendo...
– Você é muito jovem. Tem uma imensidão pela frente para pensar a respeito.

Vicente vai até o aparelho de som e, como de costume, coloca música antiga para reviver noites de amor com a ex-companheira morta nos anos 1990.

– Dança comigo?
– Sim. Com prazer.

Os dois, em silêncio, trocam passos como velhos conhecidos. Por dois minutos e 45 segundos parecem desejar que o tempo pare. Ao fim da dança, Vicente paga R$ 300 pelo programa e pede foto instantânea para seu mural particular de companhias. Indecência ali, só a solidão.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho

quarta-feira, 3 de julho de 2013

A vida de busão


Em quatro anos valeria uma graduação em qualquer universidade. São quase cinco horas por dia, de segunda a sexta-feira, à espera ou dentro de transporte público precário. É a vida de busão de Izabelle Karine Martins Moreira, de 19, moradora do Bairro Santa Cruz, em Vespasiano, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. De casa até o trabalho, no Bairro Lourdes, na Região Centro-Sul, é longo o caminho até mesmo para quatro lotações. E caro: são R$ 3,45 + R$ 2,80 por trajeto. Ida e volta somam R$ 12,50 por dia. Com 1,77m, Izabelle reclama o espaço entre as cadeiras. Quando consegue assento, enfrenta dificuldade para se ajeitar. “As pernas precisam ficar apertadas, de lado”, diz.

Para a assistente de relacionamento, é preciso de mais ônibus para diminuir o intervalo. “No horário de pico, é de 30 em 30 minutos”, conta. Izabelle, nos fins de semana, evita o transporte público porque “ele quase não existe”, avalia. Lidia Mara, de 25, de Santa Luzia, outro município da Região Metropolitana da capital, diariamente passa o mesmo aperto de Izabelle. “Depender de ônibus é horrível. Chego a ficar esperando mais de uma hora no ponto”, ressalta. A cobradora precisa acordar às 5h para chegar às 8h no trabalho. “É um serviço caro e sem qualidade”, desabafa.

Miguel Luiz de Deus, de 78, tem passe livre. Nem por isso deixou de sentir no bolso o peso das despesas com o transporte público já que é quem paga pelas passagens da filha Sirlene, de 22. “São quase R$ 400 por mês. Faz as contas… é caro demais. Como é que a gente dá conta?” O aposentado, insatisfeito com as péssimas condições das linhas de ônibus, vê com entusiasmo as manifestações das últimas semanas. Eu tô achando é muito bom esse movimento todo. Tem que baixar o preço mesmo”, considera.

É dia de Miguel visitar parte da família em Santa Luiza. Ao menos uma vez por semana, faz uso da linha 4155. Diz que chega a ficar mais de 40 minutos na Praça da Estação, esperando. Morador do Bairro São Pedro, na Região Centro-Sul, Miguel, elegante, de roupa social colorida, aguarda com paciência o “vermelhão”. Ele comenta a tabela de horários afixada em casa. “Mas ninguém cumpre o que está lá. Acompanho direitinho e nada. Eles só cumprem nos domingos e feriados porque os intervalos são de mais de hora”, pontua.

No quarteirão da Estação Ferroviária, quadrante sujo de mau cheiro, de calçada tomada por moradores de rua, muitas linhas se convergem. Ali, arena de espera para pequena multidão de grande parte dos 34 municípios da Região Metropolitana, entre 17h e 20h, é “pedaço do inferno” para a balconista Elisângela Nunes, de 26. A estudante de pedagogia reclama especialmente da falta de estrutura para as crianças e para os mais velhos naqueles pontos. No santuário evangélico de portas abertas, em frente a um dos pontos mais cheios, o pastor berra ao microfone: “Quem tá feliz bate palma!”.

Bandeira Dois - Josiel Botelho

Foto: Alexandre Guzanshe


segunda-feira, 1 de julho de 2013

“Layla, 22: o anjo espanhol”

– Layla.
– Sobe.

Segunda-feira. Dia de Cantareira ter companhia por hora de aluguel. Layla, a espanhola dos classificados relax, mais parecia capa de revista: a garota de programa mais bonita de que o velho teve notícia. Ao abrir a porta, o viúvo não conseguiu disfarçar o encantamento pela figura alta, sexy e perfumada.

 

Demorou para que os dois  trocassem palavra. Ela entrou, retirou o casaco e o entregou ao coronel. Ele colocou música antiga e foi até a cozinha buscar o vinho na temperatura para a ocasião. Cantareira caprichou nas taças e no prato fino: Pappardelle com compota de tomate confitado ao forno e manteiga de trufas.

 

Antes, ela quis fumar.

 

– Posso?
– Como quiser.

A mulher acendeu o cigarro e, entre as baforadas, catou com profundidade os olhos do velho. Ele não se intimidou e entrou no assunto.

– Você me parece ser do tipo calado, mais reservado. Um jeito bem bom de ser. “Águas paradas são profundas”, escreveu Lorca, o poeta.

Ela sorriu, apenas. Ele manteve o dramaturgo espanhol na conversa.


– “Nunca saberás, esfinge de neve, o muito que eu haveria de te querer essas madrugadas quando chove e no ramo seco se desfaz o ninho”.

Ela emendou:

– “O que é isso que soa bem longe? Amor. O vento nas vidraças, amor meu!”. “Ar de noturno”. É o meu poema preferido.

Cantareira sorriu como há muito não fazia. Com a velha câmera polaroide nas mãos, pediu para fotografar Layla. “Uma lembrança”, justificou. Ela, delicada, fez pose. Juntos, jantaram o pappardelle com gosto e amizade. O velho pagou R$ 300 pela presença e por mais um retrato na parede de memórias. E foi só.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho