Jefferson da Fonseca - Mostra Tua Cara

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Uma rua chamada solidão (parte 1)



Guaicurus. A rua do amor de mentira. Onde, por R$ 80 reais de diária, desde o início do ano, Maria, 25 anos, aluga quarto para programas. Cobra R$ 20, sem beijo na boca. Já ganhou R$ 480 por 10 horas sem roupa. Diz-se mulher da vida por vingança, traída por marido bandido, em cidadezinha da Zona da Mata. Na época, doméstica, abraçou nova carreira com o patrão babão, louco por indecências. "Por dinheiro, topo!", disse baixinho ao velho tarado, semana depois de ter deixado a casa da sogra.

Foram 10 dias de saias levantadas, às escondidas da patroa. A mulher do branquela decrépito passava a maior parte do dia fora, fazendo caridade. Maria fez apenas o suficiente para pagar as dívidas e cair no mundo. Primeiro, batalhou ponto no Espírito Santo. Por quase dois anos, passou maus bocados na mão de dono de boate vagabunda. Viciada em drogas, endividou-se e foi jurada de morte por traficante barra-pesada. Amparada por cliente evangélico, filho de pastor, conseguiu dinheiro e foi trabalhar como voluntária em templo no Rio de Janeiro. Lá também encontrou gente do mal, que alugava pessoas.

Voltou para as ruas. Agora, em avenida famosa de Copacabana. Afastada de outros vícios, fez do sexo sua maior vocação. Mentia o amor em suspiros excitantes. Atriz amadora, fingia máscara das mais convincentes. Por fora, contentamento e êxtase. Por dentro, tédio em alma nua de desilusão. Com o corpo surrado e dinheirinho guardado, perdeu o encanto pelas belezas do Rio de Janeiro. Ainda mais quando viu colega morta por bala perdida. Foi em seus braços que, em ponto de ônibus, a garota nordestina, de 19 anos, derramou última lágrima. "Meu Deus! Por que?", chorou Maria.

Do cemitério pobre, parque em ossos, para a rodoviária. Com as malas prontas, enterrou a jovem amiga. Tomou ônibus rumo a Belo Horizonte para reencontrar conhecida carioca. Na mão, amarrotado, o endereço escrito em guardanapo de botequim fedorento, onde comiam prato feito no almoço. "158F. É aqui!", pensou alto, antes de bater palmas em ruazinha estreita do Bairro São Gabriel. "Não acredito!", sorriu a velha prostituta. "Entra, mulher, que eu já tô de saída". Tempo apenas para água no rosto e malas num canto do barracão. Desceram juntas para o Centro da cidade. Tomaram café forte e comeram pastel gorduroso.

Subiram as escadas encardidas do hotelzinho fuleiro e conversaram com o Bigode. Maria adiantou o pagamento do mês. Quartinho cor-de-rosa e de luz azul, com cama de alvenaria, água quente, privada e janela. Com vista para a Guaicurus, rua da solidão.

(Continua no próximo sábado)


Vida Bandida - 25 de abril de 2009 - Jefferson da Fonseca Coutinho - Arte: Alexandre Coelho

sábado, 18 de abril de 2009

Despedida de solteira


Já tinha data para ser feliz. Igreja, salão de festa, o escambau. Vestido feito no corpo e convites distribuídos pelos quatro cantos da cidade. Aos 30 anos, a bela Valquíria, filha do deputado Bezerra, subiria ao altar como sempre sonhou: de véu e grinalda. As amigas estavam ensandecidas: "Uhu!", gritavam em coro, comandadas pela madrinha Salete, unha e carne com a futura senhora. "Sou sua irmã! Irmã!", afirmava Salete. De fato, cresceram grudadas. Com nenhuma outra mulher da família havia tanta intimidade. Estavam juntas por ocasião do primeiro beijo na boca. Uma na outra. Aventura adolescente em tempo ido, no sítio do pai, em Betim.

Era assim: desde então, dos tempos de molecas, cúmplices em tudo. Aonde aparecia uma, lá estava a outra. Entre as duas não havia segredos. Para o casório da Valquíria, Salete tomou a frente de tudo. Deixou a mãe da noiva, dona Dalva, nos calcanhares e escolheu bufê, fotógrafo, orquestra e tudo o mais. O deputado pagante, montado na bufa, nem discutia. "Manda ver!", dizia para tudo o que Salete aprovava. Já a Valquíria, com madrinha tão cheia de iniciativa, pode se dedicar a outros cuidados: banhos de lama, leite e rosas. Massagem disso e mais daquilo, além de tarô, magia e meditação.

Durante os meses de preparativos para o acontecimento, Salete, que já havia se casado quatro vezes, até se mudou para a casa da amiga. Queria acompanhar de perto toda e qualquer providência. "Filho não tenho, graças a Deus! Estou descasada. Fico com você", brindou em restaurante chique com vista para Belo Horizonte. Foi na mesma noite em que convenceu a amiga a ter despedida de solteira para mulher nenhuma botar defeito: "Tem um cara na academia: Beto. É o sujeito mais cafajeste que eu já conheci. Tá para nascer homem que gosta mais de uma esfrega. Arrumo o lugar e ajeito tudo. Bate aqui!".

Na véspera da oficialização no civil, escolheu suíte das mais charmosas em hotel requintado da cidade e preparou festinha de arromba. Velas, incensos, flores, uma beleza. O Beto, olhos vendados, trazido pela Salete, já chegou calibrado por amasso no carro e no elevador. Ficou na sala esperando a noiva. Valquíria, com o coração aos pulos, não queria sair do armário. Por fim, foi convencida de que não se tratava de traição grave, já que ainda não estava casada. "Aproveite, minha filha. Depois, é só o tédio e nada mais", disse ajeitando o figurino sexy da amiga.

A noiva, mais indecente do que nunca, ganhou o ambiente decorado. Tocada por coragem súbita, respirou fundo e decidiu devorar o sujeito-objeto. Salete veio pouco mais tarde, trazendo a champanhe pela metade. Carregava no olhar brilho diferente. Entrou na festa para confessar em prantos: "Eu te amo, Valquíria! Eu te amo!". Juntas como nunca, bailaram os quadris. O Beto ficou de lado. Como caroço de azeitona no prato.

(Arte: Alexandre Coelho - 18 de abril de 2009 - Jefferson da Fonseca Coutinho)


quinta-feira, 16 de abril de 2009

Amor sem vergonha


Fim de tarde. Mais um sábado de belo horizonte. Praça Raul Soares reformada, uma beleza. Moças de biquíni recolhem suas cangas. O sol se vai. De mãos dadas, só risos, casal da cabeça prateada se aconchega. Ela, vestidinho azul florido e meias pelas canelas, com os chinelos em dedos. Ele, calça jeans surrada, camisa de malha branca e sandálias de couro. O bigode, grisalho e muito bem aparado. Caminham sem pressa, cheios de assunto e simpatia. Do outro lado do canteiro, a poucos metros dali, um homem de meia-idade lê livro de capa amarela. Lia. Depois de ter sido despertado pela presença dos dois velhos, não conseguiu voltar às páginas do bloco letrado.

O casal se sentou em frente do sujeito. Ignorado, o observador parecia não existir para os dois velhos namorados. Invisível, ficou ali, sem conseguir tirar os olhos da cena de amor explícito. A mulher, muito à vontade e, notadamente, feliz, deixou as havaianinhas no chão, deitou o tronco no colo do homem e dobrou os joelhos, colocando os pés sobre o banco. Ele, com ares de garoto, acolheu a cabeça da companheira, compôs aconhegante base de apoio e mergulhou os dedos na bela cabeça encabelada. Uma paixão só, a dois, sem vergonha. As duas grossas alianças reluziam na penumbra.

O observador, com seus 40 e poucos anos de vida, não pôde ouvir bem o muito que diziam. Gargalhavam em canto. Presente e passado embaraçados, revisitou a própria história. Lembrou-se da mulher em casa, certamente no fogão, como em todo final das tardes de sábado, preparando o jantar da família. Ele não recordou o último passeio que fez com a mulher. "Já com o cachorro saio sempre", disse, envergonhado, para si mesmo. Também não conseguiu saber ao certo quanto tempo havia que não passava a mão em seus cabelos ou que sorriu, menino. "Deve ter sido ano passado", tentou aliviar.

Enquanto passeva com os pensamentos, a dupla da melhor idade permaneceu em namoro. Só a cena não era a mesma. Agora, estavam abraçados de frente. Ela, descalça, fazia ponta com os pezinhos suspensos, assim meio bailarina. Ele, com tronco cavalheiro, envolvia habilidoso a namorada em laço carinhoso. Olhos nos olhos, esquadrinharam o palmo entre suas bocas e beijaram beijo de novela. Cena de filme argentino-espanhol. Foi quando as luzes da praça se acenderam e a fonte jorrou suas águas voadoras. O tempo parecia ter parado em festa aos olhos transformados do observador.

O beijo ainda demorava quando o homem, às pressas, deixou o banco, atravessou a rua e entrou no prédio acinzentado. Subiu cinco andares pelas escadas, abriu a porta do apartamento, ganhou a cozinha e sorriu para a mulher como há muito não fazia.

(Arte: Alexandre Coelho - Vida Bandida - 6 de setembro de 2008 - Jefferson F. Coutinho)

terça-feira, 14 de abril de 2009

A senhorinha e a meretriz



Elas têm muito em comum: idade, 29, e rotina de luxo. Uma, a loura, é de muitos. A outra, morena, pertence apenas ao empresário endinheirado e barrigudo. Encontraram-se no consultório do ginecologista da mão de veludo, na Zona Sul da cidade. Na sala de espera chique, olhares e pensamentos cruzados. A secretária da língua solta já havia dado a ficha de uma para a outra. Agora, estavam frente a frente em confortáveis poltronas de couro. O doutor avisou atraso: engarrafamento na Avenida do Contorno.

Escondidas por trás de revistas finas de papel encorpado, as duas só pensavam na história da outra. O figurino alinhadíssimo: roupas de marca, sapatos de salto alto, bolsas raras, compradas no estrangeiro, portadoras de carteiras recheadas de cartões internacionais. A loura cobra R$ 1 mil o programa. Faz média de 15 por mês. A morena, bem casada, recebe mesada de R$ 15 mil do maridão gorducho e generoso. De passado pobre, gostam de perfumes caros e de boa comida. No estacionamento da clínica, dois carrões importados.

Uma, a garota de programa, procuradíssima por afortunados em busca de diversão. A outra, dona-de-casa, visitada vez por outra pelo marido safado, dependente de pilulazinha milagrosa: Viagra. A senhorinha queria novos passos: ser de muitos, afrouxando a cintura. A meretriz também queria novo rumo, cansada da vida de quadril sem dono. Uma quis o que exauria a outra. A morena, debaixo do barrigudo, gostava de ser chamada de puta. A loura, a pedidos, vivia fazendo papel de santa, acompanhante dos marmanjos mais infiéis.

No silêncio das palavras, apenas a música clássica, ambiente. A secretária das tetas agigantadas, no computador, lançava resultados de exames. As duas, na imaginação, invertiam seus papéis. A dama: “Podia ser eu”; a puta: “E se fosse eu?”. Esquadrinharam-se da cabeça aos pés: das jóias aos sapatos. Uma de aliança; a outra, brilhantes nas mãos, apenas. A madame lembrou os roncos do marido. Já a mulher da vida ouvia, como sinos, os gemidos de seus pagantes.

Ambas sem filhos. Ainda não pensavam hora. Cuidavam-se à medida do possível. Estavam ali, à espera do doutor gay, por susto no mês passado: duas camisinhas rompidas. Uma, em tarde de dia de semana. A outra, num sábado à noite, depois de programa de família. Ontem, quinzena de atraso no escorrimento mensal e fortes náuseas prejudicaram o sono em colchão de molas, sob lençóis de seda. Páginas das revistas estacionadas, as duas só pensavam em vidas emprestadas. No momento, rejeitavam qualquer apuro de sorte bandida.

Os R$ 500, de cada, pela consulta, fizeram com que o doutor da mão de veludo se desculpasse sem graça pela meia hora de espera. Primeiro foi a puta. Logo depois, a madame. Saíram de lá grávidas. Só não souberam mães de fetos do mesmo pai barrigudo.

(Jefferson da Fonseca Coutinho – Vida Bandida – 2 de agosto de 2008)

sexta-feira, 10 de abril de 2009

O sarro na lotação




O Bertoldo descobriu em vida o sétimo céu. Tinha cabelos longos e ficava atrás de um computador barato entre o sexto e o oitavo andar daquele prédio comercial do Bairro Funcionários. Cavalla. Um mulherão de quase dois metros de altura, de sorriso aberto, boas carnes, coisa e tal. A cavalheira já havia virado a cabeça de todo cidadão-macho da redondeza. No prédio então, a mulher era assunto em tudo o que era roda. Só o Bertoldo evitava comentar. Esquivava-se. Sempre com o silêncio carregado de intenção.


Bem mais que no fundo, em verdade, o Bertoldo alimentava descomunal paixão pela telefonista da C&C Consultoria. Desde que a conheceu na lanchonete da esquina, jamais conseguiu vergar dela os pensamentos. Doente de amor, passou a mapear os horários e itinerários da moça. Inofensivo e discreto, tanto fazia que, vez por outra, conseguia se manter bem perto da gostosona. De segunda-feira a sábado, quando a perdia no almoço, alcançava-a no café. Havia ainda o busão, entre 18h30 e 19h, no final do expediente.


E foi justamente dentro do balaio azul que ocorreria fato que mudaria a vida do auxiliar de escritório. Anoitecer chuvoso, caminho longo de duas quadras até o ponto da lotação. Bertoldo, como de costume, até que esperou pelo avião em saias e batom, mas perdeu-o logo na saída do prédio, no quebrar da esquina. Tristíssimo, seguiu sem rumo, sob as águas, pela Avenida Getúlio Vargas. Tomou coletivo e, no arrocho, com as duas mãos na vara de apoio, sentiu o perfume do mulherão.


Lá estava Cavalla, a pouco mais de três bancos, linda, ensopada em roupas coladas, quase transparentes. Parecia sonho erótico, daqueles em momentos de intimidade e solidão. Bertoldo não precisou fazer muito. Bastou seguir o embalo da passagem para se aninhar àquele corpo raro. E ali, como se fossem um só, esfregaram-se indecentes durante toda a Afonso Pena. O que foi chuva, agora, era suor. Cavalla, sapeca e serelepe, no aproveitamento da situação, acoxambrou o Bertoldo. Não bastasse o chá de nuca e traseiro, ainda mandou ver beijo de novela, antes de descer na Praça Sete.


Abobalhado, ele não conseguiu sair do lugar. Ainda pode vê-la através da janela, feliz, com o sorriso safado, enquanto o motorista careca arrancava. Daquele encontro em diante, cúmplices, dia sim, dia não, tem sarro na lotação.


(Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 11 de abril de 2009)

terça-feira, 7 de abril de 2009

No elevador, por obra do destino



Já era noite. Tarde até. Naquele prédio, dos mais antigos da Avenida Augusto de Lima, no Centro de Belo Horizonte, um elevador estava para reacender duas vidas. Dois destinos cruzados por travessura do tempo. Capricho da mão que manipula os peões. A vida é jogo de tabuleiro camaleão. Em cena, casal comum em mais um dia de rotina besta. Ele, vendedor ambulante, 43 anos, visitante no lugar. Ela, 39, secretária de empresa de comércio do 23º andar. Ambos solitários, castigados por visitantes antigos.

Ele, no último andar, entrou primeiro e apertou o “T” de térreo. Estava aborrecido, triste com o trabalho. Havia acabado de tomar chá-de-cadeira de horas do empresário endinheirado. Fechou negócio chinfrim com o bigodudo osso de envergar. “Para este mês levo meia dúzia. Quando o preço cair mais, eu sei que vai cair, levo o resto”. Sem mais cerimônias: foi assim que ele foi despachado pelo muquirana, às 22h30.

Ela, três andares abaixo, refazia o serviço da novata incompetente, amante do advogado-patrão. A boazuda foi embora mais cedo, de carona com o chefe: “Vou ter que deixar para você digitar as cartas de novo, porque tenho aula agora na facu”, disse a estagiária, deixando para trás, às 18h, pasta abarrotada de texto ruim. Escola nada. Foi parar em motel de luxo, se acabar no colo do doutor salafrário.

No acender e gritar das setas, que sobem e que descem, o abrir da porta de madeira velha anunciou o encontro. Ele, cansado, gravata frouxa e paletó amarrotado. Ela, suada, terninho desalinhado e sapato de salto apertado. Quando ela entrou no elevador, ele pensava na vida com o olhar perdido e a idéia distante. Invisíveis, não se cumprimentaram. Quem disse que elevador é lugar de gentileza?

Foi no baque dos cabos de aço que, enfim, eles se perceberam. Impossível não se tocarem no arranque. Foram jogados um sobre o outro com o enguiço da engrenagem. O porteiro paquerava pelo celular. Estava feliz demais para perceber que o elevador estava parado. Nas alturas, entre o 17º e 18º, dois estranhos espalmavam o caixote de três metros quadrados e dedilhavam os botões da emergência.

Pedido de socorro em vão, no somar dos minutos, o silêncio. Não disseram palavra. Olharam-se apenas. Ele, tomado por paixão súbita, enxergou fundo a mulher adormecida. Ela, num suspiro, beijou-o demoradamente. Braços embolados, amaram-se como nunca. O técnico da manutenção, 45 minutos depois, destravou a geringonça. Os dois, marcados pelo avesso, deixaram o prédio de mãos dadas por obra do destino.

(Jefferson da Fonseca Coutinho – Vida Bandida – 30 de agosto de 2008)

domingo, 5 de abril de 2009

O puxador de carroça


Um pesadelo. O Jaodismar parecia ter vindo ao mundo para pagar pecado. Sobreviveu a duas tentativas de aborto. Na mais traumática, a mãe se jogou na frente de carro da polícia. Por milagre, não escorreu em pedaços pelas pernas da dona desesperada. Onilda nunca quis ter o Jaodismar. O negócio dela era farrear. Era moça facinha, dessas do quadril frouxo. Tanto é que quando soube que estava grávida, listou pai pelo menos cinco sujeitos. Fora a dúzia que ela nem lembrava o nome. Quando Jaodismar escorregou ao mundo, indigente na Santa Casa de Misericórdia, não fez sol por uma semana. Bebê, embrulhado em pano sujo e barato, foi largado debaixo de tempestade em porta de abrigo na Lagoinha.~


Até os sete anos viveu de favor em casa de infelicidades. Foi quando juntou três pertences distribuídos pelo corpo e caiu no mundo. Passou cinco anos na rua, vivendo sob marquises e viadutos. Enfrentou tudo quanto é tipo de frio, fome, abuso, doença e infecção. Contudo, tinha bom coração. Não era bandido. Apenas moço de pouca sorte. Incentivado pelo Roberto, amigo trabalhador, começou a vender latinhas e papel velho. Foram morar juntos em casinha de papelão às margens da Via Expressa. No cômodo improvisado, de três metros quadrados em chão de terra, cinco homens feios e três mulheres fedorentas. Não gostava do cheiro nem dos gemidos soltos no barraco. No fundo, mesmo sem saber exatamente o que isso significava, não queria viver para puxar carroça.


Vez por outra, quando procurado por algum quadril assanhado, até aceitava o movimento indecente. Mas desde que soube que aquilo dava barriga, não se desmanchava dentro das moças porcas. Até queria pensar em uma ou outra, mas não conseguia. Ninguém também pensava em Jaodismar. Era como se não existisse. Como se não passasse de número que engrossa a contagem dos desfavorecidos. De poucas vontades, gostava apenas de ver gente de mentira, feliz nas imagens emprestadas das tevês. De criança nunca gostou. Tinha medo dos monstrinhos chorões e catarrentos que foram se amontoando na vila onde morava. Sempre teve a sensação de que os bacuris do lugar decifravam seus sentimentos.


Homem feito, aos 18, bigode e tudo, passava o dia inteiro puxando carro pesado, abarrotado. De corpo castigado, Jaodismar trabalhava para não ver o tempo passar. À noite, com a carcaça desfalecida, não conseguia fugir dos pensamentos. Por vezes o sono não vinha. Eram muitas as dores. Vivia com os dentes em ferroadas, gengivas em sangue, estômago ferido, veias dilatadas e roupa mijada. O pior estava na alma: tontura que lhe fazia arder os sentidos. No chão duro, forrado por caixa de videogame, não havia lugar de descanso. Da vida sem estudo, um pesadelo. Socorro!!!


Foi quando o Felipe, de 12 anos, em pijama, despertou molhado, em casa bacana do Sion, com o berro da mãe: “Acorda, menino! Tá na hora de ir pra escola. Quer puxar carroça?”


(Jefferson da Fonseca Coutinho – Vida Bandida – 9 de março de 2008)


O amor em tempos de solidão


Até o nome é de mentira: Vitória. Idade? 19 ou 22. Cobra R$ 15 por gemido falso. Já fez por R$ 10; R$ 30 por “oral mais caprichado”. Diz fácil “eu te amo”, de brinde. Por estilo, no ápice. Para acelerar o programa. Conta repetir a cena de 20 a 30 vezes por dia. De 120 a 180 vezes por semana. Segunda-feira não trabalha. É dia de ir à Igreja São José. Anônima, reza por mais de hora. Sem culpa. Por agradecimento e glória. Pela vida de Vitória, que sustenta pais, irmãos e o filho de 3 anos, doente, deixados no Norte de Minas.

Há dois anos, quando desceu na rodoviária, sem parentes ou amigos em Belo Horizonte, carregava na bolsa apenas recorte classificado para vaga de vendedora em loja de departamento. Tímida demais, não passou na primeira seleção. Dispensada, com dinheiro para dois ou três dias em hotelzinho barato, vagou pelas ruas sujas do Centro. Foi quando, ao pedir prato feito em boteco fedorento, conheceu mulher loura escaldada pela Guaicurus. Ponto em comum: também veio de longe. Dizia-se Andréia. Não demorou muito para as duas se tornarem vizinhas de porta, em prediozinho encardido.

“No início foi difícil. Depois a gente acostuma. O primeiro foi um menino que parecia de menor. Acho que eu dei sorte. Ele tava mais assustado que eu. Tinha tomado banho de perfume. Aqui aparece de tudo. O que mais tem é menino querendo desmamar. Tem gente estranha também. Outro dia, veio um velho que disse que era aposentado da polícia e só queria companhia. Chegou cedo, de manhã. Perguntou quanto eu ganhava por dia e me deu R$ 20 a mais pra gente sair. Disse que eu parecia com uma neta dele. Nem tirou a roupa e a gente foi. Não quis nada. Não disse nome nem telefone. Me levou no shopping pra gente almoçar e tomar sorvete. Me deu um vestido e depois me deixou na porta do hotel”, sorri.

Na portaria do prédio, o segurança descolado tenta barrar os garotos de identidade adulterada. Lugar sinistro, de cheiro cítrico. Os corredores escuros parecem intermináveis. Labirinto de muitas portas. Dezenas fechadas. Dia intenso, de trabalho surrado. Vitória tem namorado. Dividem barraco no Barreiro. Ele sabe da vida da mulher. Segundo ela, não se importa. Está desempregado. Estão juntos há cinco meses. É ela quem banca tudo: comida, aluguel e ainda mantém a família no interior. Conheceram-se na Galeria do Ouvidor, durante as compras do Natal passado. Prazer ela disse nunca ter sentido, mas revela gostar de “cobertor de orelha” para espantar as noites tristes de solidão.

Vitória é moça simples, sem vaidade. Diferente das colegas que se exibem dançarinas em lingeries rendadas, de pé, sobre as camas de alvenaria. Com sinceridade, diz ter gostado de receber sem ter que abrir as pernas, apenas pela entrevista.

(Jefferson da Fonseca Coutinho – Vida Bandida – 17 de maio de 2008)

Amor de mãe


Célia Violeta escreveu:

"Quero voar além mundo,
transpor o tempo,
encontrar e abraçar você.

Viver o silêncio e a emoção
de ter seu corpo unido ao meu,
no amor encarnado de mãe,
preenchendo minha metade levada,
lavada, diluida.

Banir a saudade
lá onde só o amor existe.
É a esperança, filhinha,
é o sonho,
de sentir no afago materno
sem dor, a minha amada
GABRIELA".

Poesia escrita com o coração na ponta dos dedos. Verso e reverso de dor doída. Em poucas palavras: grito surdo, abraço no espaço.

Adalgisa




O tempo muda as pessoas. Mais cedo ou mais tarde suas medidas já não serão as mesmas. Como disse Bernard Shaw: “De todos os homens que conheço, o mais sensato é o meu alfaiate. Cada vez que vou a ele, toma novamente as minhas medidas. Quanto aos outros, tomam a medida apenas uma vez e pensam que sou sempre do tamanho do seu julgamento”. É. Hoje, sem dúvidas, o Vargas merece nova trena.

O Vargas já foi de amargar. Especialmente com a mulher Adalgisa. Tirou-a de casa ainda garota. Ela não havia completado 16 anos quando, vestida de branco, deixou com ele a igrejinha de Ouro Preto. Casaram-se na cidade histórica para agradar a família endinheirada do noivo comerciante. O fato é que a Adalgisa jamais conheceu o cheiro de outro homem. Já o Vargas vivia perfumado por outras damas.

Fora do casamento, romântico. Um sedutor insaciável. Tratava muitíssimo bem todas suas conquistas: presentes finos e flores. Muitas flores. Já em casa, para a mulher, apenas não deixava faltar mantimentos. Adalgisa não recebia agrados do marido. Mulher de família, do quarto e da cozinha. Mãe exemplar, no sentido mais digno e extraordinário da ocupação, a moça do sorriso de anjo deu ao Vargas nove filhos. Fora quatro perdidos no parto.

“Uma santa!”, era o que todos diziam a respeito da Adalgisa. Não havia quem não se indignasse com as aventuras do marido mulherengo. Certa vez, num carnaval, depois de passar semana de “negócios” em Diamantina, o Vargas voltou tomado de doença venérea das mais bravas. Foi a Adalgisa, mesmo contaminada, quem cuidou das feridas por meses intermináveis. Ele ficou curado. Já ela, por falta de repouso, perdeu o útero.

Teve também a história da prima do Vargas, de Governador Valadares. Por três meses a loura das roupas indecentes ficou hospedada na casa da Adalgisa. Teve tratamento de rainha. Na ocasião, o Vargas encheu a casa de rosas e flores do campo. Passou período dos mais felizes. Chegava mais cedo do trabalho, tomava banho caprichado e vestia suas melhores roupas (passadas e perfumadas pela Adalgisa, claro). Da porta, de mãos dadas com a visitante, avisava aos berros: “Vou levar a prima para conhecer a cidade”.

Passado. Tudo passado. Hoje, aos 72 anos, o Vargas é homem de novas medidas. Mora com três enfermeiros que revezam plantões de 12 horas. Ainda assim, mesmo com todas as dificuldades provocadas pelo mal de Parkinson, todo mês vai ao Cemitério da Saudade levar flores para a Adalgisa. Dizem que, há dez anos, ela morreu sorrindo.

(Jefferson da Fonseca Coutinho – Vida Bandida – 13 de setembro de 2008)

sábado, 4 de abril de 2009

Leona



Presente em dias difíceis,
faz dançar as flechas do tempo.
É amizade assim... sem fim.

Mascote de Vida Bandida.

O exército dos homens sós



São cidadãos de tudo quanto é lugar e motivo. Também são de diversas gerações, cor e poder de compra. A Guaicurus é rua de encanto sujo. Ali, centenas de cinderelas e borralheiras, defendem, como podem, o pão de cada dia. Quadrado de fadas tristes, cheias de histórias sem príncipes, abóboras ou calçadinhos de cristal. A coleta em semana de entrevista dá filme. Fala-se muito das profissionais daquele comércio. Sabe-se pouco, porém, sobre os visitantes mais freqüentes do lugar. Missão difícil encontrar algum pagante disposto a dar depoimento, mesmo que em off, sem nome ou endereço. A grande maioria quer passar batido, no anonimato. Claro que há também os que vão em dupla, ou galera, para “ver o movimento” ou, simplesmente, para “desmamar o grilo”. Foi o que dois líderes de turma, mais desavergonhados, responderam, abordados em fila de beco avermelhado.

Disseram também que gostam de ver as tias em roupas íntimas, se exibindo nas camas ou nas portas. “Tem muita mulé fina aqui. Tem que dá sorte, porque as filé tá tudo ocupada, e tá assim de neguinho na porta. Só os fubá fica dando mole”, diz o sujeito de boné e jaquetão jeans desbotado, acompanhado por três amigos. No andar de cima, trio de amizade antiga. O mais velho, desconfiado no início, não quis muita conversa. Depois soltou o verbo: “A gente veio trazê o Grilo aqui pra desmamá. Já tá passando da hora dele sabê o que que é bom na vida”. O Grilo, de 18, ou quase isso, desconversou: “Ah, pára sô! Só tamo olhano as tia.” E, de brincadeira, aos tabefes e safanões, dobraram a quina escura.

O calor do bloco amigo até que desinibe. No entanto, se quem está acompanhando fala, quem está só não quer saber de conversa. Foram mais de duas horas até que alguém topasse trocar palavra. É grande o batalhão de solitários que cruzam os andares dos três prédios mais disputados do quarteirão. Apesar da pouca luz, anéis na mão esquerda reluzem. Um dos mais sós, gordo, viúvo, passa com o braço em pêndulo, exibindo, na canhota, duas grossas alianças. Na casa dos quadris surrados, entre as moças e seus pares, percebe-se claramente soma de muitas diferenças. Por minguados R$ 10 ou R$ 20, ou R$ 30, por capricho, casais de araque se desfazem convenientes nas camas de cimento armado.

Depois de muita andança, enfim, um depoente. Homem magro, estatura mediana, aparência bem-comportada. Sapatos engraxados, calça de linho barato e camisa social em mangas curtas. 45, 50 anos, no máximo. Óculos no bolso, compromisso no dedo e fala mansa: “Minha mulher teve derrame e não fala nem anda mais. Só fica na cama ou na cadeira de rodas. Venho aqui porque me sinto muito sozinho. Mas procuro sempre a mesma moça”. Fim de tarde. Disse que tinha pressa e que precisava voltar para casa. Com a cabeça erguida, apertou o passo e sumiu em meio ao exército dos homens sós.

(Jefferson da Fonseca Coutinho – Vida Bandida – 7 de junho de 2008)

Família Leona


Ponto de vista.

O mundo cão pode não ser

tão feio quanto se pinta.

A mulher de vento



Ela chegou pelo correio. Muito bem embalada, com plástico-bolha e tudo. Foi o “seu” Ananias quem recebeu e assinou o protocolo. O síndico ficou curiosíssimo quando o vizinho, ao sair de manhã para o trabalho, fez recomendações. A caixa revestida por papel brilhante ficou ali, na sala, enquanto o administrador, por telefone, deu a notícia: “A gabiroba já está madura”. Foi assim o aviso combinado: por senha. O Alceu sempre gostou de senhas. Cresceu chegado num mistério.

Voltou o mais rápido possível para não dar tempo ao amigo. Temeu que ele não resistisse e violasse os sete lacres do produto. Naquela tarde, ajeitou tudo no escritório para ter mais tempo livre. Há duas semanas aguardava o grande dia. Quando viu o quadrado de luxo sobre o sofá, mal olhou o Ananias. Num suspiro, disse apenas obrigado. Agradeceu ao amigo sem tirar os olhos do volume colorido. Carregou-o como se transportasse cristais. Contou 49 degraus. No andar de cima, depois de cruzar o corredor escuro, em frenesi, ganhou o antigo apartamento da Rua Tupis.

Antes de desembalar a namorada, preparou o ambiente para receber a luz da noite. Queria a perfeição: somou amante, jantar e vinho tinto. Ligou para o restaurante e autorizou o envio da comida. Já havia combinado com o chefe da cozinha. Queria massa fina, damasco e molho branco. Também preparou terninho especial para a ocasião: riscadinho de giz, feito sob medida por alfaiate da Rua Espírito Santo. Tomou banho demorado e cantarolou bolero. Fez a barba, perfumou-se e inaugurou cuecão de seda. Vestiu-se para noitada inesquecível. Desde que a ex-mulher partiu, há cinco anos, Alceu não tinha companhia.

Pelo interfone, anúncio do prato no portão. Generoso, agradou em prata o entregador. Mesa montada ao pé do janelão de aço, cadeiras na contra-luz da lua, garrafa esverdeada no balde de gelo, é chegado o momento. O coração acelerou quando desvestiu a caixa importada. Sob véu difuso em bolha, o último lançamento do sex shop americano. O aviso, em 12 idiomas, recomendava: “Retirar a proteção apenas depois de inflada”. Com as mãos trêmulas, seguiu o manual à risca. Engatou a maquininha elétrica de ar, ligou e esperou.

Em cinco minutos, de pé, com 1,70m de altura, mais meia dúzia de medidas corretas, a mulher de vento estava pronta. Com carinho, em olhos marejados, removeu a cobertura protetora e sorriu como o mais feliz de todos os homens.

(Jefferson da Fonseca Coutinho – Vida Bandida – 28 de junho de 2008)

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Pelas mãos de Nossa Senhora


“A vida se esvai num sopro. O agora já é ontem e o daqui a pouco, em breve, não existe mais”. O Freitas ficou com isso na cabeça enquanto seguia rumo ao bloco cirúrgico daquele hospital do coração. Era manhã acinzentada, deu para ver pela janela. Sem parentes ou amigos. Apenas ele e cinco mascarados. Em meia-idade, 50, nem mais nem menos, nunca foi de muita oração. No entanto, nos últimos dias, jamais esteve tão perto de Deus e de Nossa Senhora. Fez balanço de tudo. Reviu a vida como filme. Como martelo, uma pergunta: “O que faria se renascesse agora?”

A anestesista dos olhos azuis, generosa, ainda lhe passou a mão pela cabeça e lhe sorriu com os olhos: “Vai ficar tudo bem”, disse. O Freitas não conseguiu dizer palavra. Os últimos dias não foram de muita conversa. Travou diálogo silencioso consigo mesmo. Pensava: “Impressionante como o encontro com a sombra da dona morte faz a gente acordar para a vida”. Para ele, tudo nunca esteve tão claro como agora. Sabia exatamente o que, de fato, importava. Arrependeu-se por todas as vezes que vomitou bobagens quando estava fora de si por qualquer besteira.

As pálpebras começaram a ficar pesadas e as vistas embaralhadas. Tentou manter os olhos abertos para aproveitar um pouco mais a claridade, mas as imagens coloridas foram cedendo espaço ao túnel branco e infinito. Desfaleceu-se lentamente e a cabeça foi ficando cada vez mais confusa: “Mas... como? Não estou dormindo... Posso ouvir os aparelhos, os médicos... os instrumentos... não sinto nada...” Caso raro ocorreu com o Freitas: anestesiado, não perdeu a consciência. Ganhou mais tempo para repensar a vida: duas ou três horas, enquanto o bisturi abria-lhe o peito.

Viu-se já do lado de lá, quando sentiu a presença dos pais falecidos. Matou um pouco da saudade da mãe e sorriu novamente para o pai, companheiro de passagens felizes. Reencontrou também amores vivos: a mulher e os filhos, unidos numa só oração. Pensava cada vez com mais convicção: “Se sair dessa, sou um novo homem”. O Freitas queria viver. Ainda havia muito por fazer. O infarto veio no momento em que os negócios prometiam se ajeitar. Coração mole, cabeça dura, apenas os sentimentos bailavam ainda em descompasso.

Enquanto isso, os cirurgiões mandavam ver nas mamárias do Freitas. “Que não sejam as mãos dos médicos, mas as suas, minha Nossa Senhora”, pediu a família em comunhão. O túnel branco foi se fechando aos poucos. Os homens mascarados, um a um, foram deixando o bloco. Apenas a mulher de olhar profundo permaneceu ali. Desceu a máscara azul e sorriu o sorriso mais bonito de que já se teve notícia. Beijou-lhe a testa e partiu. O Freitas dormiu sono profundo e só acordou horas. “Sua intervenção foi um sucesso, senhor!”, disse o doutor. “A doutora! Quero agradecer a doutora!”, “Que doutora?”, perguntou o médico. Naquela manhã não havia doutora de plantão.

(Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 24 de maio de 2008)

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Ninguém é de ninguém



Gente que é gente cuida e precisa de cuidado. Não é proprietário ou propriedade. Não compra ou é comprado. Isso é passado. Coisa daqueles tempos infelizes de ignorância, de coronéis, grilhões e de chibatas. Quando se pretendiam escravos; uma santa em casa e uma puta na rua. Hoje, a história é outra. Tem que respeitar, conquistar com afeição. É tempo de parceria. De encarar tudo lado a lado. Na alegria e na tristeza. Gargalhar sozinho e soluçar no abraço. Enfrentar tormentas: amar e ser amado. Ainda assim, castelo de areia, a coisa pode se desfazer. Fazer o quê? O amor é barco sem rumo, não escolhe destino. Ruiu? Acabou? Pronto. A vida segue. É sacudir a poeira e dar a volta por cima. Não pode ser diferente. Quem vale o encontro, respeita o que deixou para trás. Quem não vale muito vai aprender com o tempo. Quebrar a cabeça até tomar rumo.

O passo é outro, é verdade, para o que se deixa usar e ser usado. Não cobra nem é cobrado. Segue contente, vivendo em corpo alugado. Não quer sonhar nem ser sonhado. Despe-se por qualquer sorriso besta no umedecer dos panos. Por desejo, simplesmente. Precisa mais? Ora veja: morto, o bicho come. Então. Amar para quê? Dá muito trabalho. Querer por querer é melhor que querer sem querer. Tem amor que é assim: não manda recado nem tolera ser rejeitado. Invade e pronto. Finca bandeira no peito do distraído e não aceita ser derrotado. Cega. Até mata quando é matado. Depois fica aí, estampado, em manchetes garrafais nas páginas de polícia. E lá se vai mais um caso passional. É triste. Muito triste.

Há também os que se somam na vadiagem. Que se cheiram. Quem junto não presta nem para ser emprestado. Abusa e é abusado. E sente muito orgulho de ser como é (ou como é parecido, já que nem tudo é o que parece ser. Não é!?). Afinal, a vida é curta e mais vale breve e cheia de aventuras do que longa e afundada na mesmice. Mas… e a pessoa interna que há na pessoa externa? Refiro-me àquela da voz perdida, abafada, que vive conversando com você quando você está sozinho. É fato: muitos de nós somos dois. Um por dentro, outro por fora. O problema é que é preciso ser bem bom das idéias para conviver com isso. No fundo, pode até ser interessante, desde que você se entenda com você mesmo. Mas se você não dá conta de você... quem é que vai dar?

Assim, cada um sendo dois, viver a dois, pode ser viver a quatro (socorro, Lewis Carroll!). Que loucura! Claro! Por isso tanto desentendimento no juntar dos trapos (ou das escovas de dentes, como dizem). Dois ou quatro, uma única certeza: ninguém é de ninguém. O melhor, talvez, seja fazer por onde merecer boa companhia. Alguém, além do nosso outro alguém, para troca justa de respeito e lealdade. Sem essa de “a carne é fraca e o espírito é de porco”. Isso é fala mansa de quem pensa com a cabeça errada. Como escreveu Tennessee Williams em À margem da vida: “Instintos são para os animais”. Racionais? Sabe-se lá o que somos.


(Jefferson da Fonseca Coutinho – Vida Bandida – 11 de outubro de 2008)